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Ser criança é um direito: o papel das famílias na preservação da infância

Por Caio Pinheiro


Nos últimos meses, termos como “adultização” e “preservação da infância” ganharam força nas redes sociais. O movimento foi impulsionado por uma série de denúncias sobre abuso infantil e pela preocupação crescente com a exposição precoce das crianças à lógica do mundo adulto. Mas, para além da internet, esse é um debate que nos chama a olhar para dentro das casas, das escolas e de nós mesmos.

Para compreender o que significa preservar a infância, conversamos com Cátia Martins, psicóloga da 4ª Vara da Infância do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Com décadas de atuação no acompanhamento de famílias e crianças, Cátia traz reflexões simples, mas profundas, sobre o que significa ser, e deixar ser, criança.


A infância como construção

Logo no início da conversa, ao ser perguntada o que é ser criança, Cátia oferece uma resposta que traduz a essência do tema:

“A criança se torna criança com o tempo.”

A afirmação revela algo essencial: a infância não é apenas uma etapa biológica, nem algo que se encerra em determinada idade, do dia para a noite. Ser criança é um processo de construção, que envolve tempo, vínculos e experiências.  Cátia compara ao cuidado de um bebê, que ainda não tem noção de indivíduo, mas que depende inteiramente do olhar e da presença do outro para se constituir. É o ambiente, e sobretudo a relação com o adulto, que molda o modo como essa criança percebe o mundo e a si mesma.



O primeiro dilema: a confiança


É nesse sentido que ela aponta uma das primeiras tarefas impostas a toda criança: a confiança.

“O primeiro dilema de uma criança é a confiança.”

A confiança é o primeiro elo entre a criança e o adulto, e o primeiro sentimento que organiza o seu mundo interior. Antes mesmo das palavras, a criança percebe, no toque, na voz e na presença, se o ambiente é seguro. Quando se sente protegida, ousa explorar; quando não, se retrai. É nesse equilíbrio entre segurança e descoberta que a infância floresce.

O papel da família


Preservar esse espaço de confiança é uma das grandes responsabilidades das famílias. Perguntada sobre o papel dos pais nesse processo, Cátia é clara:

“Para preservar a infância é necessário que os pais sejam, de fato, responsáveis. A criança tem que entender que é protegida.”

Para ela, a responsabilização dos pais é algo primordial. Ser responsável é muito mais do que garantir escola, alimentação ou cuidados básicos, é assumir a presença, o afeto e o acompanhamento cotidiano. É estar disponível para orientar, acolher e, sobretudo, fazer com que a criança entenda que há alguém que zela por ela, que observa, impõe limites e oferece segurança emocional.


Cátia lembra que as crianças ainda não têm recursos internos suficientes para lidar sozinhas com as emoções mais intensas.


“Crianças não conseguem se autorregular.”

Essa observação desmonta uma ideia equivocada que vem ganhando espaço: a de que a autonomia infantil pode ser confundida com independência emocional. Crianças precisam de amparo, referência e contenção. Adultizar uma criança é justamente o contrário disso, é transferir a ela responsabilidades que pertencem aos adultos, sejam emocionais, comportamentais ou sociais.



 O tempo que falta


Vivemos, porém, em um tempo em que a rotina acelerada e a presença digital competem com o convívio familiar. Nesse cenário, Cátia chama atenção para o que considera um dos maiores desafios contemporâneos:

“O maior desafio de hoje é a falta de tempo dos pais, que perdem muito com isso. Enquanto as crianças estão chamando os pais para o universo delas, eles estão correndo.”

A frase sintetiza um retrato comum de muitas famílias. As crianças continuam chamando para brincar, conversar, mostrar o que fizeram, pedir ajuda ou simplesmente dividir a presença. Mas, muitas vezes, o adulto não ouve, imerso em prazos, telas e preocupações. E é nesse desencontro silencioso que parte da infância se perde.


Quando Cátia fala em “falta de tempo”, ela não se refere apenas à quantidade, mas à qualidade do tempo compartilhado. Estar junto não é apenas estar perto fisicamente; é estar disponível emocionalmente. É olhar nos olhos, ouvir, responder, participar. É compreender que, para a criança, cada momento de presença é uma forma de amor, e que a ausência constante deixa marcas.


Preservar a infância, portanto, é uma tarefa coletiva. Requer famílias presentes, escolas atentas e uma sociedade disposta a proteger o tempo das crianças. É garantir que elas possam brincar, imaginar, errar, se frustrar e aprender, tudo isso dentro de um ambiente que as reconheça como o que são: crianças, e não adultos em miniatura.


Ser criança é um direito.

E reconhecer esse direito é também um compromisso, o de oferecer às crianças o que o mundo, tantas vezes, tenta apressar: o tempo de ser, crescer e descobrir.


 
 
 

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