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Como o Enem reflete os desafios da educação contemporânea no Brasil

Uma entrevista com o professor Gustavo Di Giorgio


Por Viviane Terrezo


O Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) vai muito além de uma prova: ele se tornou um espelho das contradições, avanços e desafios da educação brasileira. Criado para avaliar competências e habilidades desenvolvidas ao longo da escolaridade básica, o Enem hoje é uma das principais portas de entrada para o ensino superior e, ao mesmo tempo, um termômetro das desigualdades sociais do país.

Para entender melhor como o Enem reflete os caminhos e os impasses da educação contemporânea, conversamos com o professor Gustavo Di Giorgio, que atua há mais de 20 anos na rede pública de ensino e também no ensino superior. Com essa dupla vivência, ele observa de perto tanto as dificuldades enfrentadas pelos estudantes quanto os impactos das políticas educacionais nas salas de aula.



O Enem nasceu com a proposta de avaliar competências e habilidades, e não apenas o acúmulo de conteúdo. Na sua percepção, essa proposta ainda se sustenta diante da realidade das escolas públicas hoje?


Gustavo Di Giorgio: O Enem surgiu junto com a LDB 9.394/96, que estrutura o Ensino Médio como etapa obrigatória da educação básica. O Exame foi gerado para pensar o que era o Ensino Médio, o que se queria com ele e qual o nível dos alunos naquela época. Até hoje o Ensino Médio faz uma ruptura com o ensino profissionalizante do antigo segundo grau. Ouso dizer que não se tem algo bem estruturado do que se almeja com o Ensino Médio.

É importante lembrar que o Enem de hoje é muito diferente do Enem quando começou. Ele virou um vestibular unificado. Hoje, as escolas particulares “treinam” os alunos para se encaixar naquele modelo, o que a escola pública não consegue fazer, com currículos mínimos, cargas horárias reduzidas e pouca integração.

No estado do Rio de Janeiro, por exemplo, Biologia tem dois tempos no ensino médio. Já nos colégios particulares, há mais tempos e divisão das matérias. A educação pública não é conteudista como a particular, que dá todo o conteúdo no primeiro e segundo anos, e o terceiro é revisional. Isso cria um distanciamento.

Há grande diversidade entre as escolas públicas. Já as escolas particulares têm filosofia e estrutura mais coesas, o que favorece o desempenho no modelo atual do Enem.



Que diferenças e continuidades entre o que o Enem cobra e o que os alunos realmente vivenciam em sala de aula?


Gustavo Di Giorgio: Na educação pública, o conteúdo está muito aquém do que o Enem cobra. Muitas vezes o currículo é reduzido. A discrepância é grande entre o conteúdo dado e o cobrado. Os alunos têm pouca capacidade de argumentação e senso crítico.

No ensino médio, precisamos retomar conteúdos fundamentais. Ao falar sobre células, o aluno deveria vir sabendo o básico e muitas vezes não sabem. Por vezes, é preciso lecionar o básico do básico, muito abaixo do que o Enem cobra.

Quando chegam à universidade, os alunos apresentam dificuldades de argumentação, leitura e escrita. A autonomia é pequena. Muitos têm dificuldade em artigos, seminários e TCC. Falta base e autonomia, reflexo da fragilidade do ensino básico.




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O Enem 2025 contou com 4,81 milhões de inscritos. (Foto: G1.com)

Ao longo dos anos, o exame se tornou também um espelho das desigualdades regionais e socioeconômicas do país. Que aspectos da educação contemporânea brasileira que o Enem mais escancara?


Gustavo Di Giorgio: O Enem escancara a desigualdade social entre o aluno da escola pública e o da privada. O acesso a uma educação que prepare para o Enem depende, muitas vezes, da escola privada.

A escola pública do bairro muitas vezes não tem ferramentas para preparar o aluno. Vivemos dois mundos diferentes. Um aluno que estudou toda a vida em escolas públicas tem mais dificuldade para alcançar notas altas e competir com quem estudou em escolas particulares. O exame demonstra a desigualdade e a fragilidade da educação pública.



Pensando no futuro, o que precisaria mudar para que o exame fosse realmente um instrumento de inclusão e de valorização do ensino público?


Gustavo Di Giorgio: Investir na escola pública é essencial para haver equidade. O Enem deveria se aproximar do modelo passado, usando o Saeb como um Enem seriado, com provas ao final de cada ano, e a média serviria como referência, tornando o processo menos concentrado.


As cotas são necessárias porque a desigualdade é enorme. O ideal seria que a escola pública tivesse tanta qualidade quanto a particular. Sou contra a meritocracia. Não dá para comparar dois alunos que vivem realidades completamente diferentes. É preciso pensar a educação com mais equidade.



Educação como espelho e horizonte

Mais do que um exame, o Enem é um retrato das tensões e esperanças da educação brasileira. Ele mostra o quanto o país avançou, e o quanto ainda precisa caminhar para garantir que todos os estudantes, independentemente de sua origem, possam disputar o futuro em condições justas. Revela também o impacto direto das políticas públicas, das desigualdades estruturais e das oportunidades que chegam, ou não, às escolas que formam a juventude brasileira.


Ao mesmo tempo, o Enem aponta caminhos. Ele provoca o debate sobre o que esperamos da escola, quais competências devemos desenvolver e como construir trajetórias mais equitativas. Funciona como um espelho que evidencia nossas urgências, mas também como um horizonte que convoca educadores, gestores e a sociedade a pensar na educação como projeto coletivo, inclusivo, crítico e transformador.


Sobre o entrevistado


Gustavo Di Giorgio é professor de pedagogia e práticas pedagógicas, com experiência na rede pública de ensino e no ensino superior. Atua há mais de 20 anos na área da educação, desenvolvendo projetos voltados para a formação docente e o aprimoramento das práticas pedagógicas. Tem como principal foco de pesquisa e atuação os desafios contemporâneos da educação brasileira, especialmente no que se refere à equidade, avaliação e inclusão escolar.

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